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uma história de poligamia
Paulina Chiziane
Profa. Marília Dias
Literatura | UNICAMP
marilia1907@gmail.com
"Para cada etnia existe uma variedade de línguas e dialetos a considerar [...] Entretanto, Moçambique é uma ex-colônia portuguesa. “O português, apesar de ser falado por menos de 40% da população, é idioma oficial do país – Moçambique integra a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP)” (Celestino, 2021, p. 197)
Conheço um povo sem poligamia: o povo macua. Este povo deixou as suas raízes e apoligamou-se por influência da religião. Islamizou-se. [...] Conheço um povo de tradição poligâmica: o meu, do sul do meu país. Inspirado no papa, nos padres e nos santos, disse não à poligamia. Cristianizou-se. Jurou deixar os costumes bárbarosde casar com muitas mulheres para tornar-se monógamo ou celibatário. [...] Um dia dizem não aos costumes, sim ao cristianismo e à lei. No momento seguinte, dizem não onde disseram sim, ou sim onde disseram não (CHIZIANE, 2004, p. 92).
" [...] a ideia principal destes novos escritores, segundo Ana Malfada Leite (2003), é reivindicar o nacionalismo e encarar a literatura africana como forma de expressar a tradição e seu discurso se enquadrar na tematização específica que ela condiciona, ou seja, levar em consideração tanto a questão afetiva quanto a projeção imaginativa e intelectual que as tradições orais determinam. Porém, é com a língua portuguesa que reclamam por este lugar. [...]
(Nesse sentido) ler o romance Niketche: uma história de poligamia é olhar para um narrador que transmite a performance e a movência da voz. Os sons, as cores, as sensações descritas por este narrador remetem o leitor para uma vivência muito próxima daquela experienciada pelos narradores orais. [...]
(Na obra) mostra-se a visão de uma moçambicana consciente da sua condição social, política e cultural. Ela afirma em seu discurso que seu país vive sob a égide (proteção/defesa) fronteiriça, ou seja, que há no território moçambicano uma cultura de apropriações e incorporações que faz parte de sua forma de identidade: as culturas são fronteiras invisíveis construindo a fortaleza do mundo.
A narradora usa o espaço literário como veículo para discutir as formas de identificações e criações culturais em seu país. Ela resiste a um discurso que mantém viva a chama de uma cultura pura. [...] A viagem de Rami é feita por meio da palavra que vocaliza e se realiza como iniciação da escrita na oralidade.
Esta viagem pode metaforizar igualmente a procura de uma representação cultural mais antiga que se quer mais moderna."
"Chiziane é uma “voz africana”, que traz à cena ficcional práticas culturais milenares de povos de origem bantu (de múltiplas ramificações étnicas), que resistem na África, e se propagam por meio da oralidade, que a autora adota, para esclarecer, problematizar e viabilizar diálogos com a cultura ocidental “letrada”. Nesse contexto, Chiziane prioriza a situação de mulheres num país (Moçambique) dividido entre Norte (muçulmano) e Sul (cristão), além de micro-espaços (aldeias), todos envolvidos em práticas sócio-culturais (dentre as quais, religiosas) distintas. [...]
Transformadas e emancipadas por Rami, elas revertem o estado de dependência econômica e afetiva a que eram submetidas por Tony, passando a buscar novos laços afetivos:
“A Lu, a desejada, partiu para os braços de outro com véu e grinalda. A Ju, a enganada, está loucamente apaixonada por um velho português cheio de dinheiro. A Saly, a apetecida, enfeitiçou o padre italiano que até deixou a batina só por amor a ela. A Mauá, a amada, ama outro alguém.” (CHIZIANE, 2004, p. 332)
No desfecho de suas próprias histórias, todas essas mulheres, de Norte a Sul, são, na verdade, representações de um feminino (ou de vários deles) que testemunharam a Independência do país, do não menos feminino Moçambique (ex-colônia explorada) e que, a despeito dessa simultaneidade – independência delas e do país – são corpos que trazem inscritos em si os traços da história, da memória e da diversidade cultural do país, diante de todas as conseqüências."
TEIXEIRA, Izabel Cristina dos Santos. Elas por ela: algumas mulheres na “dança” de Paulina Chiziane. p. 83-90
ARTIGO COM ANÁLISE/RESUMO DA OBRA
“[...] dança macua - explica Mauá - uma dança do amor, que as raparigas recém iniciadas executam aos olhos do mundo, para afirmar: somos mulheres. Maduras como frutas. Estamos prontas para a vida!
Niketche. A dança do sol e da lua, dança do vento e da chuva, dança da criação. Que imobiliza o corpo e faz a alma voar. As raparigas aparecem de tanga e missangas. Movem o corpo com arte saudando o despertar de todas as primaveras. Ao primeiro toque do tambor, cada um sorri, celebrando o mistério da vida ao sabor do niketche. Os velhos recordam o amor que passou, a paixão que se viveu e se perdeu. As mulheres desamadas reencontram no espaço o príncipe encantado com que cavalgam de mãos dadas no dorso da lua. Nos jovens desperta a urgência de amar, porque o niketche é sensualidade perfeita, rainha de toda a sensualidade. Quando a dança termina, podem ouvir-se entre os assistentes suspiros de quem desperta de um sonho bom." (CHIZIANE, 2021, p. 139)
CAP. 14 - Os 50 anos de Tony e o presente de Rami;
"Ofereço ao Tony a minha mão de pedra. Sou a primeira-dama, alicerce de todos os momentos.
—Neste dia, não quis que esta grande família perma necesse invisível. Neste dia queria que todos testemunhassem que o coração deste homem é fértil como o húmus. O Tony é um homem que ama a vida e por isso a multiplica. Ele não se acobarda mas empunha a sua espada e afirma-se através de cinco mulheres e dezasseis filhos.
[...]
Faço o balanço do dia. Trazer estas mulheres para aqui foi uma autêntica dança, um acto de coragem, um triunfo instantâneo no jogo de amor. O Tony agrediu-me e retribuí o golpe, usando a sua própria arma. O mundo irá compreender-me ou condenar-me? Quem venceu esta guerra?
(CHIZIANE, 2021, p. 97)
Cap. 13 - O feixe
"O tempo passa, e um dia todas sere mos esquecidas. Cada uma de nós é um ramo solto, uma folha morta, ao sabor do vento — explico. — Somos cinco. Unamo-nos num feixe e formemos uma mão. Cada uma de nós será um dedo, e as grandes linhas da mão a vida, o coração, a sorte, o destino e o amor. Não estaremos tão desprotegidas e poderemos segurar o leme da vida e traçar o destino. Todas me olham com surpresa, como se não tivessem entendido as minhas palavras. Mas entenderam. Os dados estão lançados. Reunir as mulheres e os filhos num só feixe para a construção da família do grande patriarca."
Cap. 19 - 5 mulheres dançam
Pela primeira vez enfrentámo-lo sem medo e dissemos todas as verdades. Dissemos tudo o que nos doía. Delirámos. Estamos cansadas das tuas paixões, dizíamos, esgaravatas aqui e ali, bicas, largas e partes, como uma ave de rapina. Estamos cheias de filhos e privadas de carinho. [...]
A Saly transpira. Fixa os olhos no Tony e depois lança nos um olhar de conspiração. Ergue-se de repente, tranca as portas e esconde as chaves. Ela é uma mulher de acção e não de conversa. Chama a Lu e entram no quarto. Ouve-se o remexer dos móveis. Talvez estejam à procura de alguma coisa. Saem. A Saly convida.
— Não prolonguemos mais esta conversa. Está na hora de dormir. Estão todas convidadas a dormir aqui.
Dormir naquela casa não estava dentro dos nossos planos. Mas o que anda na cabeça desta Saly? O Tony é apanhado de surpresa.
—Dormir todas aqui?
— Hoje vais mostrar-nos o que vales, Tony — diz a Saly furibunda. — Se cada uma te realiza um pouco de cada vez, então realiza-te de uma só vez, com todas nós, se és capaz.
O Tony fica atrapalhado. Somos cinco contra um. Cinco fraquezas juntas se tornam força em demasia. Mulheres desamadas são mais mortíferas que as cobras pretas. A Saly abre a porta do quarto. A cama estava des montada e o soalho coberto de esteiras. Achamos a ideia genial e entramos no jogo. Era preciso mostrar ao Tony o que valem cinco mulheres juntas. Entramos no quarto e arrastamos o Tony que resistia como um bode. Despimo-nos, em striptease. Ele olha para nós. Os seus joelhos ganham um tremor ligeiro.
Faz muito calor neste quarto mas as janelas estão abertas. O vento corre fresco, mas o quarto é quente, de onde vem este calor todo? Ah, este é o calor da transpiração. É o fogo da zanga escapando do corpo humano. Olho para as minhas irmãs, completamente nuas. Roliças, todas elas. O chão do quarto vai vergar de tanto peso. Avalio a situação e apanho um susto. Meu Deus, é muito traseiro e muito seio. Tudo isto para um homem só?
O Tony leva as mãos à cabeça e depois ao rosto para esconder os olhos e gritar:
— Meu Deus! Por favor, parem com isso, por Deus, que azar é este que me dão agora?!
[...]
(Tony) Entra num violento silêncio. O mundo acaba de lhe cair nos ombros. Nudez de mulher é mau agouro mesmo que seja de uma só esposa, no acto da zanga. É protesto extremo, protesto de todos os protestos. É pior que cruzar com um leão faminto na savana distante. É pior que o deflagrar de uma bomba atómica. Dá azar. Provoca cegueira. Paralisa. Mata.
CAP. 3 - Tony para a esposa.
"Traição? Não me faça rir, ah, ah, ah, ah! A pureza é masculina, e o pecado é feminino. Só as mulheres podem trais, os homens são livres, Rami."
(p. 27)
CAP. 5 - As buscas de Rami
"Entrei em vertiginosas buscas. Queria saber tudo sobre os amores do meu Tony Fui ter com a Saly a maconde. Ela indicou-me a Mauá. Mauá Sualé, uma macuazinha que é um encanto.
O coração do meu Tony é uma constelação de cinco pontos. Um pentágono. Eu, Rami,sou a primeira dama, a rainha mãe. Depois vem a Julieta, a enganada, ocupando o posto de segunda dama. Segue-se a Luísa, a desejada, no lugar de terceira dama. A Saly a apetecida, é a quarta. Finalmente a Mauá Sualé, a amada, a caçulinha, recémadquirida. O nosso lar é um polígono de seis pontos. É polígamo. Um hexágono amoroso.
(p. 52)
CAP. 9 - A busca de Rami continua: Tia Maria
— Como conseguiu viver num lar com vinte e cinco esposas, tia Maria?
A velha oferece-me um olhar de infinita ternura.
—Filha minha, a vida é uma eterna partilha. Partilhamos o ar e o sol, partilhamos a chuva e o vento. Partilhamos a enxada, a foice, a semente. Partilhamos a paz e o cachimbo. Partilhar um homem não é crime. Vezes há em que partilhar a mulher é necessário, quando o marido é estéril e precisa colher o sémen de um irmão.
(...)
—Mesmo assim, para quê tanta mulher e tanto filho?
A tia Maria olha para mim e sorri.
— Cada tempo a sua história—diz ela.—A prosperidade mede-se pelo número de propriedades. A virilidade pelo número de mulheres e filhos. Um grande patriarca deve ter várias cabeças sob o seu comando. Quando se tem poder é preciso ter onde exercê-lo, não é assim? Abraão, Isac, Jacob, foram polígamos, não foram? Os nossos reis antigos também o foram e ainda são. Que mal é que há? Na bíblia, só Adão não foi polígamo. Em nossa casa as damas produziam filhos e davam ao reino a imagem de prosperidade. Se o rei tivesse dificuldades, recorria-se aos assistentes conjugais e reprodutores, recrutados entre os homens belos, robustos, inteligentes, do reino. Um rei tem que mostrar a imagem de virilidade, homem sobre todos os homens.
(p. 63-65)
CAP. 18 - O confronto com Mauá Salué e a lógica de Rami
"Francamente falando, não tenho nada a ver com a poligamia. O meu problema já expliquei: se eu reclamo de mais, perco o marido todo. Se entrar no seu jogo fico quieta no meu cantinho e ele fica bem mais pertinho. De resto, nas nossas tradições, essa coisa de poligamia depende do potencial de cada homem. Os reis da nossa terra tinham uma potência superior a vinte mulheres, e a tia Maria foi a vigésima quinta. Os ministros, governadores e toda a nobreza tinham potencial de cinco a dez. Os pobres, com poucas posses, tinham o limite de três.
(...)
Só ganha estatuto aquela que sabe partilhar o marido, que ultrapassou o ciúme, que preserva os valores da tradição, que cumpre tudo o que a lei manda. Ganha muito mais prestígio aquela que sugere ao marido um novo casamento e ajuda a escolher a nova esposa."
(p. 113)
CAP. 4 - Rami convesa com uma consulente para se iniciar nos rituais do amor segundo as tradições do norte.
As mulheres do sul acham que as do norte são umas frescas, umas falsas. As do norte acham que as do sul são umas frouxas, umas frias. Em algumas regiões do norte, o homem diz: querido amigo, em honra da nossa amizade e para estreitar os laços da nossa fraternidade, dorme com a minha mulher esta noite. No sul, o homem diz: a mulher é meu gado, minha fortuna. Deve ser pastada e conduzida com vara curta. No norte, as mulheres enfeitam-se como flores, embelezam-se, cuidam-se. No norte a mulher é luz e deve dar luz ao mundo. No norte as mulheres são leves e voam. Dos acordes soltam sons mais doces e mais suaves que o canto dos pássaros. No sul as mulheres vestem cores tristes, pesadas. Têm o rosto sempre zangado, cansado, e falam aos gritos como quem briga, imitando os estrondos da trovoada. Usam o lenço na cabeça sem arte nem beleza, como quem amarra um feixe de lenha. Vestem-se porque não podem andar nuas. Sem gosto. Sem jeito. Sem arte. O corpo delas é reprodução apenas.
(p.33)
CAP. 23 - Rami convesa com as novas esposas depois que Tony pede o divórcio.
"As vozes das mulheres do norte [as novas esposas] censuram em uníssono. No sul a sociedade é habitada por mulheres nostálgicas. Dementes. Fantasmas. No sul as mulheres são exiladas no seu próprio mundo, condenadas a morrer sem saber o que é amor e vida. No sul as mulheres são tristes, são mais escravas. Caminham de cabeça baixa. Inseguras. Não conhecem a alegria de viver. Não cuidam do corpo, nem fazem massagens ou uma pintura para alegrar o rosto. Somos mais alegres, lá no norte. Vestimos de cor, de fantasia. Pintamo-nos, cuidamo-nos, enfeitamonos. Pisamos o chão com segurança. Os homens nos oferecem prendas, ai deles se não nos dão uma prenda. Na hora do casamento o homem vem construir o lar na nossa casa materna e quando o amor acaba, é ele quem parte No norte as mulheres são mais belas. No norte, ninguém escraviza ninguém, porque tanto homens como mulheres são filhos do mesmo Deus."
(p. 152-153)
CAP. 1 - O espelho
Vou ao espelho tentar descobrir o que há de errado em mim. Vejo olheiras negras no meu rosto, meu Deus, grandes clheiras! Tendo andado a chorar muito por estes dias, choro até de mais. Olho bem para a minha imagem. Com esta máscara de tristeza, pareço um fantasma, essa aí não sou eu. Titubeio uma canção antiga daquelas que arrastam as lágrimas à superfície. Nessa coisa de cantar,
tenho as minhas raízes. Sou de um povo cantador. Nesta terra canta-se na alegria e na dor. A vida é um grande canto. Canto e choro. Delicio-me com as lágrimas que correm com sabor a sal, com o maior prazer do mundo. Ah, mas como me liberta este choro! (...) Ah, meu espelho confidente. Ah. meu espelho estranho. Espelho revelador. Vivemos juntos desde que me casei. Porque só hoje me revelas o teu poder?
(p.14)
CAP. 2 - O confronto
— Espelho, espelho meu, veja o que fizeram de mim!
— Fizeram-te o que mereceste, amiga minha.
—Achas que fiz mal?
— Agrediste a vítima e deixaste o vilão. Não resolveste nada.
—Ah!
(p. 24)
CAP. 8 - O espelho que denuncia a solidão
"Eu sou aquela que tem um espelho como companhia no quarto frio. Que sonha o que não há. Que tenta segurar o tempo e o vento. Só tenho o passado para sorrir e o presente para chorar. Não sirvo para nada. As pessoas olham para mim como uma mulher falhada. Que futuro espero eu? O marido torna-se turista dentro da própria casa. As mudanças correm rápidas neste lar. As mulheres aumentam. Os filhos nascem. A família monógama torna-se polígama. A unidade quebrou-se em mil, o Tony multiplicou-se. As amigas perguntam-me pelo Tony só para gozar comigo. As conformistas querem convencerme de que o amor já fez o seu tempo."
(p.59)
CAP. 14 - O espelho censurador
A festa prolongou-se até aos confins da madrugada. (...) Recolho-me ao meu quarto. Vou ao espelho olhar para a minha cara e o espelho acusa: sua embriagada, sua escandalosa, desmancha-prazeres! Tento adormecer, mas o sono nào vem. Volto e bebo uma boa dose, para esquecer. (...) Faço o balanço do dia. Trazer estas mulheres para aqui foi uma autêntica dança, um acto de coragem, um triunfo instantâneo no jogo de amor.
(p. 97)
CAP. 11 - Rami sem lugar
"Preciso de um espaço para repousar o meu ser. Preciso de um pedaço de terra. Mas onde está minha terra? Na terra do meu marido? Não, não sou de lá. (...)
Poligamia é ser mulher e sofrer até reproduzir o ciclo da violência. Envelhecer e ser sogra, maltratar as noras, esconder na casa materna as amantes e os filhos bastardos dos filhos polígamos, para vingar-se de todos os maus tratos que sofreu com a sua própria sogra.
Viver na poligamia é ser enfeitiçada por mulheres gananciosas, que querem ficar com o marido só para elas. No lar polígamo há muitas rivalidades, feitiços, mexericos, envenenamentos até. Viver na poligamia é usar artimanhas, técnicas de sedução, bruxedos, intrigas, competir a vida inteira com outras mais belas, desgastar-se a vida inteira por um pedaço de amor."
(p. 81)
CAP. 23 - Rami e seu espelho quebrado
"Estou no precipício. Mais um passo e eu me afogo. Ah, meu amor ingrato. De ti sempre aceitei tudo, suportei tudo: doenças, desejos, problemas, lamentos, vergonhas, sujeiras, conflitos. Agora libertas-te, dispensas-me, trocas-me, humilhas-me, por outras mais novas, mais belas. Desejo-te felicidades, meu amor.
Vou ao quarto e dialogo com o meu espelho.
—Espelho meu, o que será de mim?
O espelho dá-me uma imagem de ternura e responde-me com a maior lucidez de sempre.
— Não serás a primeira a divorciar, nem a última. Os divórcios acontecem todos os dias, como os nascimentos e as mortes, mas tranquiliza-te. Há uma grande diferença entre a vontade do homem e a vontade de Deus. O que Deus põe, o homem não dispõe.
— E qual é a vontade de Deus, espelho meu?
— E qual é a tua vontade, gémea de mim?
(p. 149)
CAP. 34 - O (novo) reflexo
"De repente o meu espelho plano se transforma em bola de cristal e reflecte imagens, reflecte segredos. Prediz o futuro e revela-me segredos inconfessáveis. Pergunta-me:
— Quem és tu, que não reconheço?
Entre lágrimas eu respondo:
— Sou aquela que sonhou amada e acabou desprezada. A que sonhou ser protegida e acabou por ser trocada. Sou eu, mulher casada, quem foi violada mal o homem deu sinais de ausência. Sou a Rami.
— Não és a Rami. Tu és o monstro que a sociedade construiu.
Encostei o meu rosto no espelho e chorei perdidamente. Ganhei o controlo de mim mesma e olhei de novo. A imagem do espelho sorri. Dança e voa com leveza de espuma. Levita como um jaguar correndo felino nas florestas do mundo. Era a minha alma fora das grades sociais. Era o meu sonho de infância, de mulher. Era eu, no meu mundo interior, correndo em liberdade nos caminhos do mundo.
Ganho coragem e pergunto.
—Espelho meu, o que pensas de mim?
— Sossega. Não há, neste mundo, mulher mais bela do que tu.
— Espelho meu, existe neste mundo mulher mais triste do que eu?
— Há. Há milhões de milhões em todo o mundo.
— Diz-me, espelho meu. Haverá no mundo mulheres mais traídas do que eu?
São todas. Todas! No amor, todos os homens são traidores."
(p. 214)
1ª FASE
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