“Crônica tem esta vantagem: não obriga ao paletó-e-gravata do editorialista, forçado a definir uma posição correta diante dos grandes problemas; não exige, de quem a faz, o nervosismo saltitante do repórter, responsável pela apuração do fato na hora mesma em que ele acontece; dispensa a especialização suada em economia, finanças, política nacional e internacional, esporte, religião e o mais que imaginar se possa. Sei bem que existem o cronista político, o esportivo, o religioso, o econômico, etc., mas a crônica de que estou falando é aquela que não precisa entender de nada ao falar de tudo. Não se exige do cronista geral a informação ou o comentário precisos que cobramos dos outros. O que lhe pedimos é uma espécie de loucura mansa, que desenvolva determinado ponto de vista não ortodoxo e não trivial, e desperte em nós a inclinação para o jogo da fantasia, o absurdo(...)"
Há algo errado nisto.
Onde havia florestas construímos cidades de concreto, asfalto e vidro. Aí vivemos. Ou melhor: trabalhamos. Mas como o lugar onde trabalhamos não é onde queremos viver, então no fim de semana rumamos para onde há floresta ou praia, onde, além do verde e do azul, se pode respirar.
Chegamos. Acabamos de encostar o carro na garagem da casa de campo, fazenda ou do hotel nas montanhas.
Chegar aqui não foi fácil. Duas, cinco, ás vezes dez horas de engarrafamento. O verde e o azul, lá longe ainda, difíceis de alcançar. E a gente ali na estrada entalado num terrível rito de ultrapassagem.
Aproximamo-nos da cidade. A temperatura começa a subir, um calor abafado vai grudando na pele. O mau cheiro irrita as narinas, o ruído agride os tímpanos. O ritmo do pulso é tenso e há um cruzar de buzinas, faróis, anúncios e sempre a possibilidade de uma emergente violência.
Chegamos ao apartamento ou casa. Descarregamos tudo pelo elevador com ar de vitória e derrota. Na sala, jornais, correspondência acumulada. O dia seguinte já nos espreita na treva. Aí começaremos a fazer novos planos para fugir da cidade. Planejaremos outro feriado e contaremos quanto tempo falta para a aposentadoria.
Há algo de errado nisto. E persistimos.
Alguns procuram a casa na montanha de uma estranha e inócua maneira. Desabam a dormir cerrando os sentidos para a própria natureza. Bebem, comem, bebem ou ficam jogando, jogando e mal olham lá fora. A natureza continua um cenário exteriorizado.
Outros, no entanto, saem a cavalo sentindo entre as coxas o calor da alimária em movimento. Noutros caminhos pedalam-se bicicletas. As pessoas da cidade, em verdade, seguem meio desajeitadas por essas trilhas silvestres. Estão de bermuda ou jogging procurando a via natural de ser. Já os habitantes do interior olham os da cidade estranhando neles a inabilidade em deixar o corpo seguir à vontade no verde. Falta ao da cidade o sentimento de pertencimento a essa paisagem.
À noite pode-se acender a lareira e ali se ficar prostrado com um copo de uísque ou vinho, uma xícara de chá ou café, olhando, olhando o fogo como um primitivo na caverna de si mesmo.
Todavia, essa incursão no paraíso vai acabar O fim de semana escoou-se. Já começamos a refazer as malas e a ficar ansiosos e de mau humor. Vamos começar a descer a serra para retomar ao campo de concentração urbana. Mal sinalizadas, as estradas vez por outra nos deixam ver um cão morto no asfalto.
Mas digamos que a viagem foi normal. O simples fato de nos aproximarmos do verde já muda o clima psicológico dentro do carro. Vai ficando para trás a fuligem da cidade. E ao subir a serra começa uma descontração no diafragma. Aqueles que estavam tensos, indo para a natureza, já tornam suas frases mais macias, já começam a ficar mais amorosos. Algumas brigas de casal vão se diluindo na passagem da cidade para o campo.
Enfim, chegamos. São desembarcadas as malas, as portas e janelas da casa e corpo se abrem e a clorofila começa a entrar pelos poros. As flores continuaram a elaborar suas cores em nossa ausência. Os pássaros continuaram a emplumar as estações.
Os comezinhos prazeres: distinguir o canto do sabiá do grito do gavião. Seguir o bando de maritacas alardeando o verão. Se deitamos na rede, pouco acima da cabeça zumbem as asas de um beija-flor.
Jogar água nas plantas à tardinha ou à noite, num diálogo no escuro com aquilo que o escuro pulsa. Que força sai do chão, que força na escuridão. Um pio de coruja ali e alguns vaga-lumes adiante atravessam a íris da noite.