O seu olhar possui, num jogo ardente,
Um arcanjo e um demónio a iluminá-lo;
Como um florete, fere agudamente,
E afaga como o pelo dum regalo!
Pois bem. Conserve o gelo por esposo,
E mostre, se eu beijar-lhe as brancas mãos,
O modo diplomático e orgulhoso
Que Ana de Áustria mostrava aos cortesãos.
E enfim prossiga altiva como a Fama,
Sem sorrisos, dramática, cortante;
Que eu procuro fundir na minha chama
Seu ermo coração, como a um brilhante.
Mas cuidado, milady, não se afoite,
Que hão de acabar os bárbaros reais;
E os povos humilhados, pela noite,
Para a vingança aguçam os punhais.
E um dia, ó flor do Luxo, nas estradas,
Sob o cetim do Azul e as andorinhas,
Eu hei de ver errar, alucinadas,
E arrastando farrapos - as rainhas!
Milady, é perigoso contemplá-la
Quando passa aromática e normal,
Com seu tipo tão nobre e tão de sala,
Com seus gestos de neve e de metal.
Sem que nisso a desgoste ou desenfade,
Quantas vezes, seguindo-lhes as passadas,
Eu vejo-a, com tal solenidade,
Ir impondo toilettes complicadas!…
Em si tudo me atrai como um tesoiro:
O seu ar pensativo e senhoril,
A sua voz que tem um timbre de oiro
E o seu nevado e lúcido perfil!
Ah! Como me estonteia e me fascina…
E é, na graça distinta do seu porte,
Como a Moda supérflua e feminina,
E tão alta e serena como a Morte!…
Eu ontem encontrei-a, quando vinha,
Britânica, e fazendo-me assombrar;
Grande dama fatal, sempre sozinha,
E com firmeza e música no andar!
Análise do poema
''Deslumbramentos'' encontra-se divido em quatro partes distintas.
Primeira parte
Corresponde às sétima e oitava estrofes.
Aqui encontramos o sujeito lírico resignado à atitude altiva e orgulhosa que a mulher que ama revelou quando se cruzou com ele.
"Pois bem. Conserve o gelo por esposo"
Corresponde às quatro primeiras estrofes.
É a confissão do fascínio que Milady exerce sobre o "eu" lírico, como o próprio confessa.
''Ah! Como me estonteia e me fascina..."
Constituída pelas restantes estrofes, onde o sujeito poético alerta Milady para os perigos das suas atitudes e do modo como todo o orgulho e altivez se podem voltar contra ela.
"Mas cuidado, milady, não se afoite / Que hão-de acabar os bárbaros reais".
Corresponde às quinta e sexta estrofes.
É o relato do encontro entre o sujeito poético e Milady.
"Eu ontem encontrei-a"´
Figuras de estilo
“Com seus gestos de neve e de metal. ”
“Eu vejo-a, com tal solenidade”
- ''Milady'' significa minha senhora.
- Assim, esta é, com certeza, a mulher por quem o sujeito poético se apaixonou. Se esta é então a mulher amada do sujeito poético e ele a trata como Milady, estamos perante uma relação de criado-senhora, encontrando-se ela num plano superior, aristocrático, e ele num plano inferior, servil.
Milady é uma mulher:
- Fria
- Insensível
- Fútil
- Indiferente a todas as solicitações amorosas do "eu"
- Postura altiva e solene
Porque a paixão que é despertada por essa contemplação leva ao sofrimento do ''eu'' e à humilhação de se sentir ignorado pela mulher que ama. Mais do que o facto de não ser correspondido, ao sujeito lírico magoa a atitude de desprezo e indiferença desta mulher, que o ignora e não demonstra qualquer emoção na sua presença.
Características psicológicas
"passa aromática e normal"
"impondo toilettes complicadas"
"ar pensativo"
"a sua voz que tem um timbre de oiro"
"lúcido perfil"
"graça distinta do seu porte"
Milady é uma mulher:
- encantadora
- bela
- perfeita
- fascinante
- sensual
- O "eu" confessa que "é perigoso contemplá-la, / Quando passa aromática e normal".
Porque será perigoso contemplar Milady?
Dupla djetivação: "Quando passa aromática e normal,"
Apóstrofe:''Milady, é perigoso contemplá-la,''
Estrangeirismo: ''Milady'' , ''toilettes''
Metáfora: “gestos de neve e de metal”
Anáfora: “Com seu”
Comparação: “Em si tudo me atrai como um tesoiro”
Antítese: “Um arcanjo e um demónio”
O poema inicia-se com uma apóstrofe - ''Milady''.
- A partir daqui ficamos a saber que todo o poema é dirigido a uma mulher aristocrática, de um estatuto social superior, uma vez que este modo de se dirigir a uma mulher faz parte da cortesia que se respeita entre classes sociais mais elevadas.
Deslumbramentos
Rima Cruzada
- Face à postura de Milady, o "eu" lírico não pode fazer mais que resignar-se. Sabe que esta mulher dificilmente mudará a sua atitude e , por isso, ironiza, embora com mágoa, para que mantenha como seu companheiro "o gelo", a frieza e a insensibilidade que mostra ter com ele.
- Milady é então comparada à imperatriz Ana de Aústria, pelos modos diplomáticos e orgulhosos, e à Fama, ''altiva'', ''dramática'' e ''cortante''.
- Apesar de não ser correspondido por Milady, o ''eu'' lírico está apaixonado e, por isso, embora sabendo ser em vão, afirma que procurará mudar a atitude da mulher, enternecendo o seu coração.
Este poema é constituído por dez quadras.
Quanto à métrica é formado por versos decassilábicos.
" Milady, é perigoso contemplá-la (A)
Quando passa aromática e normal, (B)
Com seu tipo tão nobre e tão de sala, (A)
Com seus gestos de neve e de metal. " (B)
Predominância de rima rica - quando a rima é entre palavras de classes gramaticais diferentes.
O poema decorre na cidade, que personifica a ausência de amor. É um lugar de atração e de repulsa, que desperta um desejo absurdo de sofrer.
- O desprezo por parte da mulher está bem patente no encontro relatado pelo "eu" lírico.
- Milady surge "Britânica", altiva, "com firmeza e música no andar!", no entanto, a "Grande dama fatal", aquela que mata quem por ela se apaixona, aparece "sempre sozinha", uma vez que o seu coração é gélido, frio, insensível e, por esse motivo, não se entrega a ninguém.
- O seu olhar é caracterizado de forma contraditória, pois por um lado seduz e encanta com a sua beleza angelical, mas por outro o modo como Milady ignora e despreza o sujeito poético fere e magoa .
- Nos duas últimas estrofes, o sujeito poético deixa um aviso a Milady. Esta deve ter cuidado e não se alegrar com a sua condição de rainha, capaz de um poder absolutista sobre os homens. O "eu" lírico avisa-a que o seu poder advém de algo passageiro, a sua beleza. Um dia esta condição de superioridade acaba e os povos humilhados - os apaixonados desprezados - irão vingar-se.
- Qual poderá ser então essa vingança? Quando esta "flor de Luxo" perder a sua capacidade encantatória e vaguear pelas ruas abandonada, retribuir-lhe-ão o mesmo desprezo que ela agora mostra para com aqueles que estão apaixonados por ela.
Alexandra Martins, nº1
Inês Freitas, nº12
Inês Oliveira, nº13
Crítica social
- Cesário gostaria de ver aqueles que desprezam as classes sociais inferiores passarem por aquilo que passam os que trabalham todos os dias e são tratados com repugnância.
- Assim, estas estrofes revelam o ideário de Cesário Verde em ver as condições sociais alterarem-se, para que aqueles que trabalham diariamente pudessem ver recompensados os seus esforços, e aqueles que vivem às custas do trabalho alheio fossem castigados.
Índice
- Estrutura interna;
- Análise formal:
- classificação das estrofes;
- métrica;
- rima;
- figuras de estilo.
Cesário Verde
- José Joaquim Cesário Verde nasceu a 25 de fevereiro de 1855 em Lisboa, Madalena, e faleceu a 19 de julho de 1886 em Lisboa, Lumiar.
- Foi um poeta português, sendo considerado um dos pioneiros, precursores da poesia que seria feita em Portugal no século XX.